7.1.11

Os quadrinhos suburbanos do Tio Sam

(matéria atualizada e originalmente publicada na revista Kaboom!, de janeiro de 2005)

Por Leonardo Passos

Na década de 60, ao explodir a contracultura hippie e os manifestos contra a guerra do Vietnã, um grupo de quadrinhistas malucos usuários de substâncias ilícitas decidiu pôr as mãos na massa e subverter as imposições do mercado de quadrinhos dominado pelas mega-editoras DC e Marvel. Esse grupo utilizou a linguagem dos comics como válvula de escape contra as autoridades e o governo da época, criticando-os ou apenas menosprezando a cultura de massa e os costumes de uma sociedade decadente e amedrontada pelos longos anos de guerra. Já que ninguém se dispunha a lançar os seus famigerados quadrinhos, então quem melhor para fazê-lo senão os seus próprios criadores? E foi aí que a história dos quadrinhos começou a se alterar...

Vanguardistas e politicamente incorretos

Um dos maiores confrontadores do american way of life e da hipocrisia norte-americana foi Robert Crumb. No início dos anos 60, Crumb arrumou um emprego em uma fábrica de cartões em Cleveland, onde teria a oportunidade de trabalhar com "arte" e sair da casa dos pais, na Filadélfia. Mas logo o desenhista descobriu que era apenas mais um empregadinho qualquer que fazia trabalhos chatos e burocráticos. Mas como não queria voltar para a casa dos pais, Crumb teve que engolir a seco a idéia e aliviar suas frustrações nas horas vagas desenhando quadrinhos. Mudou-se para São Francisco e algum tempo depois conseguiu participar da revista Help, editada por Harvey Kurtzman, criador e editor da Mad, quando se ligou totalmente ao movimento da contracultura.

Em 1967, Crumb criou a Zap Comix (lançado no Brasil em uma coletânea pela editora Conrad em 2003) e, em troca de um velho toca-fitas, conseguiu que dois amigos imprimissem a primeira edição da Zap com uma tiragem de 5.000 exemplares. Mas quem decide bater de frente com o mercado editorial tem seus problemas. Como Crumb não tinha onde vender suas revistas, ele e sua mulher, Dana Crumb, entupiram um carrinho de bebê com revistas e foram vendê-las nas ruas. E assim surgiu a lenda!

Diversos álbuns do autor foram publicados no Brasil pela editora Conrad: Fritz the Cat (2002), Mr. Natural (2004), América (2004), Blues (2004), Mr. Natural - Vai Para o Hospício e Outras Histórias (2005), Minha Vida (2005), Bob & Harv - Dois Anti-Heróis Americanos (2006), com roteiros de Harvey Pekar (Pekar é o criador da série autobiográfica American Splendor, interpretado no cinema por Paul Giamatti no filme Anti-Herói Americano), Gênesis (2009) e Meus Problemas Com As Mulheres (2010).

Mas a história não se resume a isto. Outras "aberrações" se juntaram ao criador do gato Fritz em sua empreitada com a Zap Comix.

Outro que aprontou bastante foi o texano Gilbert Shelton. Em 1963 já era bem conhecido no meio underground por sua revista Texas Ranger, uma das principais revistas estudantis da época, e, assim como Crumb, já havia publicado na revista Help. Em 67 lançou a primeira história dos Freak Brothers no jornal LA Free Press. Nessas histórias, nada de seres superpoderosos com roupas coloridas e coladas ao corpo, e sim três hippies vagabundos que passavam o dia fazendo trambiques e correndo atrás de drogas, além de eventuais orgias sexuais. Para dar seqüência às suas publicações, Shelton se juntou a alguns amigos, que compraram uma impressora industrial e montaram a Rip Off Press, de onde saíram os primeiros números da revista Fabulous Furry Freak Brothers. A editora Conrad publicou no Brasil duas coletâneas imperdíveis intituladas Fabulous Furry Freak Brothers (2004) e Fabulous Furry Freak Brothers - A Viagem Continua (2005).

Robert Williams era um jovem briguento e tinha vários problemas com as autoridades, devido ao envolvimento com gangues e drogas. Enfim, era um rapaz "exemplar". Tinha dificuldades em conseguir um emprego (por que será?!), até que um dia foi contratado para trabalhar como ilustrador em uma oficina que construía veículos personalizados a partir de carros tradicionais, os chamados hot rods.

O psicodélico Rick Griffin era um aficionado por surf, hot rods e motos, mas também gostava de desenhar. Fez vários cartazes de shows e capas de discos para bandas como Grateful Dead, Steppenwolf, Neil Young, Jefferson Airplane, entre muitos outros, tornando-se muito conhecido no meio como um dos maiores artistas da psicodelia sessentista. Nos anos 70s, Rick converteu-se ao cristianismo e fez diversos trabalhos nesta área. Durante os anos 80s fez artes para bandas de rock como The Cult. Em 1991, após se isolar do mundo, morreu em um acidente de moto.

Um dos que mais viveu de perto a efervescência da guerra foi S. Clay Wilson, que fazia parte de uma gangue de motociclistas e antes de entrar no mundo dos quadrinhos moralmente ofensivos, trabalhou como enfermeiro no exército. Foi bastante influente para os quadrinistas de sua geração. Wilson também fez ilustrações para livros de William Burroughs e fez uma versão muito pessoal para os contos dos irmãos Grimm. O sujeito está na ativa até hoje.

Manuel Spain Rodriguez trabalhava em uma fábrica de cabos eletrônicos em Buffalo, Nova Iorque. À noite, dedicava-se à sua gangue Road Vultures Motorcycle Club e às militâncias esquerdistas. Latino, subversivo e maloqueiro. O que mais um jovem precisava para ser repudiado pela sociedade americana na década de 60? Já que era desenhista, lançou sua própria revista-manifesto contra a guerra e o governo americano. Fez bastante barulho.

Victor Moscoso nasceu na Espanha e chegou a São Francisco em 1959. Arrumou emprego em uma editora, onde fazia paste-up (método para criar os layouts de uma página, definindo a disposição de textos e imagens), inclusive de livros de Charlie Brown e Snoopy, de Charles Schulz. Desenhou inúmeros e importantes cartazes de shows na década de 60 e era professor na San Francisco Art Institute. Envolveu-se intensamente com a efervescente agitação cultural da Califórnia e tornou-se reconhecido pelas cores vibrantes e psicodélicas que usava em sua arte.

Paul Mavrides trabalhou bastante em revistas como Young Lust, Anarchy Comix e Rip Off Comix. Juntou-se a Gilbert Shelton e Dave Sherridan e colaborou com estes nas aventuras dos Freak Brothers. Entre seus trabalhos recentes está o documentário Grass (lançado no Brasil pela editora Abril com o título Maconha), que fala sobre a proibição da maconha nos States.

Esse grupo de junkies foi responsável por uma grande renovação cultural nas décadas de 60 e 70, e devido à influência que esses caras exerceram em muitos artistas, os quadrinhos atingiram novos horizontes que talvez nunca fossem encontrados se a Zap Comix não existisse.

Novo quadrinho underground norte-americano

Comic Book - O novo quadrinho norte-americano. Esse é o nome do livro lançado pela editora Conrad em 2000, que traz a excelente safra dos novos (alguns não tão novos assim) quadrinistas do cenário alternativo americano. Nomes como Dame Darcy, Richard Sala, Debbie Dreschler, Lloyd Dangle e Adrian Tomine fazem parte dessa sensacional coletânea. Além deles, existe também a participação dos irmãos Hernandez, Peter Bagge, Joe Sacco e Daniel Clowes, que já tiveram álbuns solos lançados no Brasil.

Jaime & Gilbert Hernandez são os criadores da revista Love & Rockets, um dos quadrinhos independentes mais influentes da década de 80, que chegou a ter algumas edições publicadas em terras tupiniquins pela editora Record, além de algumas histórias na saudosa revista Animal. O título foi um dos mais vendidos pela editora americana Fantagraphics, a maior editora de quadrinhos underground dos EUA.

A editora brasileira Via Lettera lançou em 2004 o maravilhoso álbum Sopa de Gran Peña, de Gilbert Hernandez, que conta as dramáticas histórias dos habitantes de Palomar, uma pobre cidade fictícia da América Central. Seguido a este, a editora publicou Pés de Pato (2007), coletânea de nove histórias criadas por Gilbert Hernandez para a série Love & Rockets. Estes livros foram anunciados como os primeiros volumes de algumas coletâneas que a editora iria lançar com a vasta obra dos latinos irmãos Hernandez. Porém o projeto não obteve sequência, como costumeiramente acontece no Brasil.

A mesma editora lançou também, em 2001, o livro Ódio, do quadrinista Peter Bagge, que apresenta o cotidiano de Buddy Bradley, um rapaz suburbano que leva uma vida semelhante à de muitas pessoas por aí, com problemas com a namorada, com os amigos com quem divide sua casa, com o emprego e com a própria consciência, já que um jovem metropolitano que se preze deve ter seus inúmeros problemas pessoais; mas nada que uma boa cerveja gelada não resolva. Ódio é engraçado, sarcástico, ácido, introspectivo, crítico e, muitas vezes, cheio de ódio, como sugere o título.

Joe Sacco segue o gênero jornalismo em quadrinhos. Poucas HQs merecem tanto esse título quanto as criadas por Sacco, que transforma seus diários de viagem em verdadeiras reportagens. A editora Conrad publicou os livros Palestina - Uma Nação Ocupada (2000) e Palestina - Na Faixa de Gaza (2003), que tratam da situação dos palestinos nos territórios ocupados por Israel. A mesma editora lançou mais três álbuns do mesmo autor: Área de Segurança Gorazde - A Guerra na Bósnia Oriental 1992-1995 (2001), Uma História de Sarajevo (2005) e a divertida autobiografia Derrotista (2006). Ainda sobre a questão palestina, a editora Companhia das Letras, sob o excelente selo Quadrinhos na Cia., lançou, em 2010, o livro Notas Sobre Gaza, que dá continuidade aos dois álbuns lançados pela Conrad.

Daniel Clowes é o David Linch dos quadrinhos. Com muita crítica e ironia, o autor da aclamada revista Eightball, publicada pela Fantagraphics nos EUA, recria o estilo de vida norte-americano, transformando-o em um pesadelo obscuro e nonsense. No excelente Como uma Luva de Veludo Moldada em Ferro, também lançado pela Conrad, em 2002, Clowes nos conta uma bizarra história de crimes, extraterrestres e conspirações absurdas, povoada por caricaturas sombrias de nerds, freaks e pornógrafos.

Depois de uma considerável onda de lançamentos de comix no Brasil, houve um pequeno recesso e as editoras pareciam ter perdido o fôlego para o tema. Entretanto, duas editoras passaram a cobrir essa lacuna com diversos lançamentos do gênero, caso da Zarabatana Books e da supracitada Quandrinhos na Cia.

A primeira publicou três títulos importantes que até então passavam desapercebidos pelas editoras nacionais, como Maakies (2007), de Tony Millionaire, Whoa, Nellie! (2007), de Jaime Hernandez, e Underworld (2008), de Kaz.

 A segunda veio com tudo para o mercado de quadrinhos nos brindando com relevantes obras de peso, como Retalhos, de Craig Thompson, Umbigo Sem Fundo, de Dash Shaw, e Jimmy Corrigan - O menino mais esperto do mundo, de Chris Ware, todos lançados em 2009.


A Conrad voltou a lançar outros autores, como títulos elogiadíssimos, como Fun Home - Uma tragicomédia em família (2007), de Alison Bechdel, Black Hole Vol. 1 - Introdução à biologia (2207) e Black Hole Vol. 2 - O fim (2008), de Charles Burns, três gratas surpresas que fizeram a alegria dos leitores mais maduros.

Outras editoras que fizeram suas incursões no mundo dos comix foram a Barba Negra (em parceria com a Leya), com Cicatrizes (2010), de David Small, e a Arte Sequencial (dos mesmos responsáveis pela loja online Rika), com Birdland (2010), de Gilbert Hernandez.

Apesar da recente profusão de títulos, muitos autores relevantes permanecem inéditos no Brasil, como Dame Darcy, Debbie Dreschler, Megan Kelso, James Kochalka, Richard Sala, Adrian Tomine, entre outros. Além do mais, os leitores aguardam ansiosos por novos títulos de autores que tiveram apenas um títulos publicado em terras tupiniquins, como Daniel Clowes e Peter Bagge.

Quem se habilita?

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